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II CONAG (Congresso Nacional de Gastronomia) realizado em Natal de 06 a 08 de abril/2010

II CONAG (Congresso Nacional de Gastronomia) realizado em Natal de 06 a 08 de abril/2010
Oficina: Quem quer queques? os cupcakes brasileiros pela Chef Lucia Soares. Na foto: queques de banana passa com limão cravo, merengue de caramelo e paçoquinha de amendoim.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Herança lusitana

PÉ DE MOLEQUE – O BOLO PRETO DO NORDESTE BRASILEIRO


Chef Lucia Soares

A cultura da transmissão oral se distancia cada vez mais dos nossos dias curiosamente tão cercados de todo o gênero de comunicação. Com ela se perdem também os saberes e fazeres que nos transformaram no que somos, isto é, no que nos confere uma identidade. Se, imediatamente temos um mundo acessível a qualquer momento, por outro lado estamos deixando de dialogar com o nosso passado e perdendo o vínculo com as nossas próprias raízes.
No último natal participei com o Chef Paravati da confecção do Bolo Pé-de-moleque na Praia de Pirangi do Norte, em Parnamirim/RN. Trata-se de uma praia de pescadores que preservam ainda o antigo costume de trocar o bolo com parentes e amigos na véspera de natal. As receitas são guardadas pelas mulheres das famílias que se esforçam para reproduzir como suas mães e avós faziam. As medidas dos ingredientes são sempre de “olho” e no “tato”. É vendo e sentindo a massa com as mãos que essas mulheres se mantêm fiéis guardiãs de suas origens, alheias aos inúmeros apelos comerciais de toda a sorte de panetones que invadem as suas casas.

A produção do Bolo Pé-de-moleque começa muito antes do natal com a chegada dos primeiros cajus que vão cedendo suas castanhas, desde então, depositadas pouco a pouco num balaio ou cesto até que este esteja bem cheio. Dois ou três dias antes se dá a torra das castanhas numa fogueira para que fiquem bem pretas e depois serem puxadas para fora das brasas com um ciscador e, só depois de frias, serão cuidadosamente descascadas; colocada sobre uma pedra cada castanha é fortemente batida com outra pedra até se partir e soltar sua amêndoa que ainda deverá ser descascada antes da utilização.

Depois vem a torra do cravo com a erva-doce numa “tacha” com seu aroma incensando a casa, e só no momento de usar serão pilados e peneirados; a preparação do mel de rapadura (que deve ser do engenho de Japecanga - remanescente da atividade açucareira do RN) que se faz colocando a rapadura partida em pedaços com água numa panela que é levada ao fogo para ferver até o ponto de mel. Os cocos secos já foram retirados do coqueiro e bem limpos, agora partidos e rapados no rapa-coco para terem seu grosso leite extraído.

Então, uma grande quantidade de massa puba ou carimã que pode ser fresca ou seca é despejada numa bacia. Junta-se o mel de rapadura, o leite de coco, as especiarias e as castanhas moídas, manteiga ou margarina, sempre vendo o ponto para sentir as quantidades. Pode acrescentar ovos ou não. A massa fica firme que dá para moldar os bolos com as mãos e depois são decorados com as castanhas inteiras. A lenha do forno (preservado no quintal das casas) deve estar crepitante. Lava-se e seca-se bem as folhas de bananeira que servirão para embrulhar os bolos que vão assar por cerca de meia hora de cada lado. O evento reúne varias gerações de mulheres da família que se revezam nas tarefas para a produção do bolo.

Pesquisando o Pé-de-moleque em Portugal encontrei as Alcomonias na região do Alentejo que segundo o historiador João Madeira ”Alcomonia era, no século XV, um bolo ou doce oblongo de linhaça, cominho e mel”, posteriormente substituídos: o mel pela calda de açúcar ou melaço, o cominho pela canela e a linhaça pelo pinhão e farinha de trigo e depois de assado, cortado em losangos. Pertencia a doçaria pobre. Hoje, muito parecido com o pé-de-moleque que encontramos nos outros estados brasileiros. Como os pés-de-moleque do nordeste, as alcomonias também se encontram esquecidas em Portugal, e apenas um número reduzido de mulheres mais idosas insistem em prepará-las para vendê-las nas feiras alentejanas. Em Cozinha Alentejana, Alfredo Saramago recolheu a seguinte receita de alcomonia: "Leve um litro de mel ao lume com uma colher de chá de canela. Mexa sempre quando o mel levantar fervura deite um decilitro de água e depois um litro de pinhões torrados. Deixe ferver novamente até levantar outra vez fervura. Retire do lume e tenda, numa tábua, esta massa, com a ajuda de farinha e forme losangos. Não deixe arrefecer os pinhões para que não caiam".

O bolo preto também é originário de Portugal encontrado, sobretudo na Ilha da Madeira. Considerado uma iguaria dos festejos natalinos lusitanos ou como o bolo de casamento dos noivos camponeses é composto de mel, melaço, açúcar branco ou amarelo, manteiga, farinha de trigo, ovos, especiarias, frutas secas e ou cristalizadas, café ou chocolate, fermento ou bicarbonato.

Identifico uma forte influência do bolo preto sobre o bolo pé-de-moleque. A presença do mel ou melaço foi mantida, a farinha de trigo foi substituída pela mandioca puba e a farinha de pau, as especiarias e a manteiga também permaneceram; ao invés de frutas secas, as castanhas de caju; e o fermento ou bicarbonato como são ingredientes mais jovens não existiam no período da nossa colonização. Porém, não podemos descartar também a influência da Alcomonia do século XV como bolo em sua forma oblonga e a presença do mel de rapadura e oleaginosa. A influência indígena o embalou para cozer na folha de bananeira.

Receita de pé-de-moleque à moda de Pernambuco recolhida por Gilberto Freyre:

“4 ovos, 6 xícaras de massa de mandioca, 1/2kg de açúcar de segunda, 1 xícara de castanhas de caju pisadas, 1 coco, 3 colheres de sopa de manteiga, erva-doce, cravo e sal. Espreme-se a massa, passa-se numa peneira, depois junta-se o leite de coco, tirado com um pouco d’água. Em seguida, os ovos, a manteiga, o açúcar, as castanhas, pisadas, uma colherzinha de sal, e outra de cravo e erva-doce pisadas. Leva-se ao forno numa forma untada e pôe-se em cima algumas castanhas de caju inteiras.”

Nota de Cascudo: “O açúcar de segunda é, às vezes, substituído por rapadura. Raro, hoje em dia, o cravo-do-reino, mas erva-doce. Com a rapadura o pé se torna, coerentemente da cor do moleque.”
O Bolo pé-de-moleque pode ser classificado como um bolo de bacia, “enche-bucho ou engana-fome” como chamou Cascudo. Sua massa é densa, cozida numa forma achatada para depois ser cortado em pedaços; é geralmente comido pela merenda para tapear a fome. O Bolo de bacia também tem sua origem em Portugal, é um bolo muito antigo e sua receita está registrada no livro de receitas do século XVII - Arte de cozinha - do Mestre Rodrigues. "Amassa-se meya quarta de farinha com agua fria temperada de sal desfeito, duas gemas de ovos, pouca manteyga & agoa de flor, depois de muyto bem sovado esta massa sobre o duro (como para folhado) cortese em pelos & estendão se fazendo se folhas delgadas do tamanho da bacia; na qual depois muyto bem untada com manteyga de vacca ponha se em huma folha e sobre ella um arratel de amendoas pisadas feytas em massapão..."

São Paulo, fervereiro de 2009

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